Contos da Mega-Sena

terça-feira, março 16, 2010 Clovisnáilton



Seu Moreira sempre foi um cara que apostou na loteria. Diferentemente de sua esposa, que sempre falava que era dinheiro jogado fora, sabia que um dia a sorte lhe sorriria. Nestes últimos anos, depois da tão sonhada aposentadoria na Rede Ferroviária Federal, saia religiosamente toda quarta e sábado ou outro dia qualquer que tinha algum jogo acumulado, entrava na loteria munido de muita esperança e, de posse de seus volantes, jogava.

Sabia de cor e salteado os números dos 10 cartões: CPF seu com o aniversário da filha mais velha; data do aniversário de casamento com o aniversário da senhora sua dona; dia que a avó Nita morreu, inclusive com o horário certinho; o dia em que bateu o Corcel e a placa do automóvel que deu perda total entre outras datas e números de documentos. Moreira era assim, meio sistemático: os mesmos números sempre. Não acreditava nestas inovações do jogo. Surpresinha, então, era bobagem.

Até que, um dia, se rendeu.

Mas se rendeu pelo tom doce e suave da voz da encantadora funcionária da lotérica. Primeiro tentou lhe empurrar um bolão (que detestava só de ouvir falar). Relutante, negou. Depois, diante do olhar sedutor da bela morena que reclamou que não havia troco (“quer uma raspadinha, Seu Moreira?”), caiu de joelhos. Os olhos do velho se voltaram para o teto do estabelecimente e, olhando assim, aquela fisionomia, parecia que ele estava fadado a aceitar aquela proposta.

Mal sabia que ele estava era pensativo. Aquele senhor quase octogenário, nos últimos momentos “úteis” da sua vida sexual ativa, estava era revisitando o passado. Tentou puxar pela memória qual foi a última vez que viu uma raspadinha... “depois que deu baixa no Exército, por volta de 1949, numa zona benquista nas imediações... Lourdes... Lourdes era o nome dela... morena, baixinha, cabelos crespos... resolveu inovar, raspou a danada e lhe deu por alguns cruzeiros... depois disso, nunca mais viu uma raspadinha...”

Lambeu o beiço e aceitou a oferta, olhando para a moça que poderia ser sua filha mais velha, imaginando-a em trajes de baixo.

- E duas surpresinhas?

Sabia como funcionava. Duas surpresinhas já era demais... não confiava no jogo. Falou que não, mas a morena insistiu: “marque seis números num cartão e mais uma surpresinha então, Seu Moreira...”.

A fila atrás do homem crescia, assim como os resmungos dos clientes. Virou para o lado, olhou para os marmanjos, pegou o volante em branco da mão da moça do caixa e preencheu, aleatoriamente, seis números. Marcou, na parte do jogo surpresa, o número um e entregou.

Na quinta conferiu seus jogos. Nada! Nada nos cartões normais, nada de acertar as datas e muito menos a placa do velho carro azul... mas acertou duas quinas naquele da surpresinha! Incrivelmente o número escolhido aleatoriamente foi idêntico ao que ele havia marcado.

Acredite se quiser, mas depois deste dia, Seu Moreira mudou radicalmente de vida: comprou uma Halley Davidson, separou de sua esposa, desistiu de jogar aqueles 10 cartões nojentos (assim disse ele) e hoje mora num apartamento de três quartos com sua nova namorada, a bela funcionária da loteria, que além de lhe dar ótimos conselhos para os jogos... é adepta à uma depilação total da perseguida. 

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